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buru-rodas

De Alpines novos e antigos

Em 2018 a Renault comemorará 120 anos do seu surgimento e 20 da operação no Brasil. Eventos imagináveis pelas pretensões da empresa: ser, com Nissan e Mitsubishi, o terceiro grupo de automóveis no mundo. Aqui, bem marcar o crescimento constante, sucessivo e consistente, mostrar estar presente desde 1959 via sociedade com a Willys-Overland para fazer seus produtos Dauphine, Gordini, 1093, Interlagos e a herança do R-12 aqui chamado de Ford Corcel.

Alpine >> Um dos eventos nacionais será apresentar o Alpine A110, redivivo esportivo inspirado no mítico vencedor de ralis, produzido no Brasil, México, Espanha e Bulgária. Aqui, graças ao talento dos pilotos e da Equipe Willys, mudou a vocação de rali, tornando-se vencedor em circuitos de velocidade. Novo A110 utilizou a base conceitual criada pelo também mítico Jean Rédélé: aerodinâmica e pouco peso. Relativamente ao original, inverteu a posição do motor, girando-o da popa à entre-eixos traseiro. Ironia: copiou a solução então dita alucinada de 1965 pelo piloto carioca Ricardo Achcar e viabilizada pelos lusos irmãos Ferreirinha de trocar o motorzinho de 4 cilindros e 850 cm³ (traseiro) por um V8 de 2.500 cm³ entre-eixos. (Perceba a emoção do autor no texto abaixo.)

Evolução: Alpine A110 original e o novo
Evolução: Alpine A110 original e o novo

Base >> Projeto Alpine supera o patamar de ser apenas mais um produto. Representa a esportividade, começando com equipe e motores na Fórmula 1, patrocínio de categorias no automobilismo (como a Copa Alpine), abertura de novo segmento de mercado. Há anos a Renault assumiu a Alpine e agora refez a fábrica de Dieppe, França, onde a marca nasceu e cresceu. Não se baseia na proposta nacional do designer João Paulo Melo levada à Renault Brasil, de baixo custo para industrialização. O novo Alpine A110 não utiliza carroceria em compósito de fibra de vidro, mas de alumínio em processo único no mundo: motor da aliança Renault-Nissan (fase pré-Mitsubishi) de 4 cilindros, 1.800 cm³, 16 válvulas, turbo, 270 cv de potência e 32 kgf.m de torque. Transmissão distante da original: automática com dupla embreagem, sete marchas e tração traseira.

Proposta nacional para reviver o Interlagos
Proposta nacional para reviver o Interlagos

O que faz? >> Combinação de potência com baixo peso (menos de 1.100 kg) oferece larga dose de alegria. Muito esperto, faz de zero a 100 km/h em 4,5 segundos e crava velocidade final em 250 km/h. A vinda será para tatear o mercado pós-queda do artificialismo dos 30 pontos adicionais no IPI; quantificar interesse dos revendedores (os definidores do sucesso ou fracasso do produto); pesquisar mercado para quantificar vendas, determinar investimento em homologações, treinamento de vendas e assistência. Deverá ser atração no ´Brazil Classics Show´, o mais elegante dos encontros de automóveis antigos no país, realizado em Araxá (MG). Neste ano, calendário de 31 de maio a 3 de junho. A Renault será o principal patrocinador. Preço? Na Europa, a versão de entrada vendeu série inicial de 1955 unidades a 58.500 Euros cada. Lançamento das ´berlinette´ em versões Pure e Legend será no Salão de Genebra, em março de 2018.

O início: Achcar-Simca-Santa Fúria >> O carioca Ricardo Achcar, gerador de ideias e moda, filho de família de muitas posses, de tudo fez e bem. Piloto, construtor de automóveis, pioneiro em caminhos europeus, pilotou com Luizinho Pereira Bueno na Smart, equipe inglesa de Fórmula Ford comandada pelo multimídia e hoje Sir Stirling Moss. E promoveu casamento teoricamente impossível: Berlinette Willys Interlagos com motor Simca entre-eixos! Trabalho de engenharia de coragem, pois o projeto original do Alpine A 108 (fabricado no Brasil como Interlagos) era baseado numa treliça central envolta em fibra de vidro, carro para exclusivo motor traseiro. Mas Achcar aplicou-o entre-eixos com apoio dos irmãos Herculano e Antônio Ferreirinha, depois fabricantes dos Fórmula Heve. Dele são os comentários e o texto escrito para os originais do inédito livro por mim cometido sobre a história do Simca. É muito bom, dá ótimo cenário de época, pela avulsiva redação de Achcar. Não acatei sua ameaça, pois editei o amplo texto para caber nesta coluna. Assumo meus direitos de ´Publisher´ e aproveito o recém passado Natal para oferecê-lo como lembrança aos leitores apreciadores de história dos automóveis nacionais.

A capotagem do Milton Amaral e o Santa Fúria (Por Ricardo Achcar) >> “ Tudo começou nas 250 Milhas de São Paulo, em 1965. Milton Amaral e eu estávamos com gosto de sangue na boca. Tínhamos feito os 1.000 Km de Interlagos com uma Berlineta Interlagos 850 cm³ com motor muito bem preparado pelo Antônio Ferreirinha, e suspensão apreciada pelo ícone Ciro Caires, piloto cuja característica era compartilhar tudo que podia em prol do esporte a motor. Era madrugada e tínhamos rodado como um relógio. O único incidente comum na neblina de Interlagos foi com o Milton, perdendo a segunda tomada da Curva do Sol e, para não sair barranco afora pela externa, forçou uma rodada e ficou no meio da pista virado ao contrário com o motor morto (carburador Solex de corpo duplo afogado) e com dificuldade de dar partida. Os segundos passaram e o Milton tentava desafogar, mas era tarefa para a bateria perder o fôlego. E adivinhou na densa neblina, estar parado num ponto de desgarro de tangência e que, logo, logo, alguém ia chegar por ali. Entre pensar e enxergar, quatro luzes cresceram meteoricamente diante do parabrisas e passaram fulminantes de cada lado da Berlineta… Toco e Jaime Silva com os Simca Abarth. O motor pegou, Milton parou no box e eu assumi o volante. Após 3 horas trocamos a posição. Às 9h a neblina levantava numa manhã exclusiva de Interlagos e Le Mans. Aquela camada levantando na reta dos box e no Retão, e o baixo circuito jogando para fora da neblina, aos ouvidos dos assistentes, o rasgo dos motores com a incógnita de quem ia chegar na subida da Curva da Junção. Estávamos em 9º lugar e gente boa vinha capengando e quebrando. A 40’ da chegada, em 2º lugar, na Curva do Pinheirinho, terceira marcha engatada, a alavanca de câmbio da Berlineta ficou na mão do Milton. Chegamos com frustração eterna. Afinal, o motor era de apenas 850 cm³… Por isso, nestes 250 Quilômetros, na quarta volta, o Milton, muito rápido, atacou a Curva da Ferradura por fora, passou dois concorrentes e, sob nossos olhos soltou a Berlineta numa derrapagem controlada para ficar por dentro na Subida do Lago. Manobra para pilotos excepcionais. Mas, infelizmente, pegou um cascalho de beira de pista e foi para o brejo capotando violentamente. Por sorte saiu ileso. Resultante, tínhamos a disposição de mudar: em vez da Berlineta uma Trolineta!

O Santa Fúria, pioneiro com motor entre-eixos (Ilustração de Maurício Moraes)
O Santa Fúria, pioneiro com motor entre-eixos (Ilustração de Maurício Moraes)

Herculano Ferreirinha recebeu a Trolineta (ex-Berlineta) em sua oficina na Vila Isabel, Rio de Janeiro. “Eu sou lanterneiro. Fibra de vidro não é a minha praia.” Mas adquiriu bons conhecimentos aplicados ao construir carros de corrida. O chassis de espinha central do Jean Rédélé formava uma estrutura misturando tubos de aço com fibra de vidro, primórdio dos monocoques como conhecemos hoje. Ora, na violenta capotagem, o solavanco aplicado pelo motor na treliça integrada, provocou torções e deformações e, para corrigir, exigiria corte e remendo, com uso de solda autógena e certeza de incêndio geral. Risco e oportunidade provocaram-me considerar nova forma ao automóvel, ante perfis assemelhados entre a Lola GT de Le Mans e o possível da moribunda Berlineta. Aí surgiu o Manoel Truviso, habilidoso, equilibrado e criterioso. Pau para toda obra, perfil rasante, não se fazia notar. Um bom pedaço do Simca-Achcar Santa Fúria teve as mãos e a inteligência do Manoel, somadas ao trabalho e ao comando de equipe do Herculano.

Motor Simca V8 entre-eixos e a caixa Collotti (Foto: Ricardo Achcar)
Motor Simca V8 entre-eixos e a caixa Collotti (Foto: Ricardo Achcar)

Assim tornei-me ´designer´ da Trolineta, e minha imaginação espacial alarmou os portugueses e meu co-piloto Amaral, pois indicava que não seria coisa confiável. Muito do projeto e execução vinha das palavras do Ciro Caires, disparando processo de elocubração, misto de invenção e vontade de ganhar corrida, sem limite razoável dentro de mim. Mas eu acho, deve ser assim. Ao Antônio não importava se o carro ia fazer curva ou segurar nos freios, mas como pendurar um motor num chassis de espinha central? Em sua inconformada cabeça, o motor ficaria do meu lado direito e, de fato, não ficou muito longe. Ao final, resultado prático, me incendiou a nuca meia dúzia de vezes antes de me vencer. Dava medo. A ´pôrra´ dava um tiro e queimava a nuca aos berros, com assobio de caldeira e locomotiva na cabine da enfurecida Trolineta. Mas antes de espumar no cockpit, muita água rolou. Ciro nos recebeu na fábrica da Simca, ouviu-me e ao Antônio, e disse: “- Segura aí que vou falar com o Chico”. Chico era o Landi, ícone das corridas e chefe do departamento de competição da Simca. Era da melhor qualidade como pessoa, mas tinha birra de “cariocas e suas baboseiras” e ninguém lhe tirava a razão. Landi só atendeu por ter sido pedido do Ciro, com motor de 142 hp medidos em dinamômetro, o melhor que tinham. Ciro Caires é um nome inesquecível na minha agenda de recordações.

O fazer >> A propriamente dita amarração da treliça de suporte do motor na Trolineta Santa Fúria é de complicada narrativa: dois canos de parede grossa saiam do tronco central no limite traseiro, erguiam-se até 15 cm do coletor de admissão, carburadores e os cabeçotes planos, em alumínio. O bloco do motor em ferro, tinha um par de suportes estruturais, permitindo amarração de responsabilidade. No encontro dos tubos ascendentes, o suporte da carroceria do chassi original, colocamos mais um tubo de suporte, fechando um triângulo estrutural. Problema sem solução era a pouca espessura do eixo piloto da caixa de 5 velocidades criação do preparador Colotti, suprimindo anéis sincronizadores, aplicando engrenagens com dentes retos. Fora projetada para Renaults 4 CV, Dauphines e Gordinis e motores 750 e 850 cm³, não para um V8/2.5. Um duplo H, definia: primeira à esquerda, abaixo; quinta igual, à direita; ré oposta, para cima. O trambulador foi criação do Manoel exigindo nanoprecisão ou se quebraria. Outro era o sistema de arrefecimento. Radiador frontal abaixo do motor com caixa de compensação e sangradores para eliminar bolhas de ar. Bem calculado, mas fomos vencidos por um detalhe de verificação. O diabo está nos detalhes.

Voltando ao conjunto geral do carro, não foi difícil constatar que o aumento de peso ocasionado pelo motor baixo e entre-eixos, respondeu ao resultado projetado. O motor girava em 6.200 rpm e podia chegar a 6.400 sem ponto fraco de quebra. Era muito resistente com limite definido pelo sistema arcáico de varetas de válvulas. Mas à época não havia carro para arrancar na frente do Santa Fúria. Em relação ao conjunto, estabilidade e aderência limitadas pelos pneus radiais concebidos para derrapagem controlada.

Referência >> O Simca-Achcar foi apelidado de “Vem quente que eu estou fervendo…” pelo jornalista Marcus Zamponi. Colou, e em nada enobrece a minha obra. A razão estava no fato de, após algumas voltas, quando a temperatura da água chegava aos 103 ou 104 graus, a mangueira de saída inchava, se soltava espirrando a água fervente no meu pescoço. Resumo a história: o sistema de arrefecimento do motor contava com o de melhor na indústria do país. Radiador celular Bongotti aumentando o percurso da água e o máximo de canais vazantes. Pedimos com capacidade para 11 litros, mais a estocada nos canos de transporte, com diâmetro de 1,1/2. A bomba era poderosa, resistente, desenvolvida pelo Chico Landi e o motor sempre com total rendimento e potência nunca fundiu. Não aquecia por falta d’água, mas sim por má troca de calor no sistema baseado em alta pressão. Tantos anos passados creio, o problema estava na pressão formada pelo sistema de devolução dos estimados 11 litros d’água.

Explicação >> Numa noite, quatro anos após, entrei no box de corrida na minha casa e pedi ao Antônio me ajudar a medir a capacidade do radiador do Simca-Achcar: os 11 litros encomendados foram, na verdade física, apenas 7… Silenciosos nos olhamos, fechamos a porta do box e fomos para a Rua Montenegro (hoje Vinicius de Moraes) e lá, no Bar Garota de Ipanema pedimos uns baldes de cerveja. Então, sem aviso algum o português começou a esbravejar e a soltar impropérios que fariam Cabral ir de volta para Portugal. Bebia, espumava, me respingava. Eu fiquei calado e murcho.” //// PS: Há tempos busco localizar o Santa Fúria ou os seus restos ou a história de seu fim. Se você souber, mande-me um eMail. O Museu Nacional do Automóvel agradecerá. (RN) (Os artigos assinados por colaboradores são de inteira responsabilidade dos seus autores.A editoria geral desse veículo, necessariamente, não concorda com as opiniões aqui expressas. Texto desta coluna: Roberto Nasser)